A semente

Você mal nasceu e já está aqui, grande, firme e forte. Fiz-te segundo o que eu quero, embora eu saiba que você poderá seguir outros caminhos e ser quem você não é. Pode deixar-se levar, enganar, por mentiras. Eu sei bem o caminho que você vai seguir, vai crer em coisas absurdas, vai tomar isso como verdades absolutas sem pestanejar, sem questionar.
― Como assim? Quem é você? Onde estou? Não estou entendendo nada, nem me lembro de nada do que aconteceu ontem. ― Você falou atordoado numa enxurrada de perguntas, estas as quais voltará a perguntar-se um dia.
― Você nasceu. ― Eu respondi simplesmente, não tinha motivos contundentes para não o dizer.
― Eu... Nasci?
― Sim.
― Eu não existia?
― Não antes de hoje, por isso hoje é um dia especial para mim, porque eu o fiz.
― Por quê?
― Essa é a pergunta que você mais fará na vida que recebeu de mim. Muitas vezes encontrará respostas, outras vezes, não. Você poderá enlouquecer em busca da verdade, da vida, do universo.
― Por que me criou? ― Você disse. Ainda estava espantado com tudo.
― Eu vou responder a todas as perguntas que me fizer, porque sei que quando você sair da mulher que escolhi como sua mãe, não se lembrará de nada. Mas terá vestígios desta conversa quando se tornar um adulto.
Você continuou com uma cara de curiosidade suprema, enquanto eu permaneci sereno e calmo, então continuei a falar:
― Eu te criei porque eu te amo, já amava mesmo antes de você existir, quando ainda estava só em meus pensamentos.
― Eu sou um robô? E você é um cientista?
― Não. ― Sorri com sua pequena lógica ― Você é um ser humano, dotado de inteligência, reinante sobre todos os animais e plantas de um pequenino planeta que vocês chamam de Terra e que fica num sistema que vocês deram o nome de Solar, embora existam muitos outros sistemas similares ao seu pela galáxia. Aliás, por todo o universo.
― Então você é Deus?
― Acertou, meu pequeno.
― Mas como você me criou? ― Você ainda não tinha entendido o proposito de estar ali.
― Eu arranquei um pedaço de mim e, com ele, eu fiz você.
― E você fez isso com todos os humanos?
― Sim.
― Mas então chegará um ponto em que você não terá pedaços, certo?
― Não, meu filho, eu sou mais do que você está vendo aqui. O que você vê é um reflexo de mim. Sou muito maior do que isso e você só pode me ver porque ainda é puro. O mundo vai tirar sua pureza e você ficará muito diferente de mim, deixará de me ver na minha criação, nas pequenas coisas da vida. Mas sei que um dia retornará e será quem você realmente é, conseguirá me ver novamente. Porque pureza não se trata de atitudes, trata-se do quanto você deixa ou não de ser você mesmo, do jeito que te fiz.
Depois de uma pausa, onde você parecia bem intrigado e pensava bastante, ouvi mais uma pergunta sua:
― Onde é aqui?
― Aqui é todos os lugares e, ao mesmo tempo, nenhum lugar.
― Então aqui não existe?
― "Aqui" é relativo. Pode ser que aqui seja um parágrafo de uma história em um bom livro, ou aqui pode ser o ponto em que a água está na forma congelada.
― Aqui é um estado, como os estados da água?
― Isso mesmo.
― E quem eu sou?
― Você é meu filho.
― Como todos os outros na terra?
― Cada um é meu filho, mas cada um é único, porque cada um é um único pedaço meu que muito estimo.
― Por que eu sou dotado de personalidade?
― Você também é um reflexo do que você será quando for adulto. Sei que dentro de você borbulham informações, mas elas ainda serão vividas e aprendidas por você.
― Estou vendo o futuro, então? Como pode?
― Achei que você já tinha entendido que sou Deus e que para mim nada é impossível. O tempo para mim não existe, não estou preso a ele. Mas você, quando surgir em sua mãe, se subjugará ao tempo e muitas vezes se preocupará demasiadamente com ele.
― Por que tenho tantas dúvidas, perguntas?
― Isso é inerente à humanidade. Se não o tivesse, ai sim você seria um robô. E fico feliz que você seja assim, que você procure, busque, cresça. Não fiz um universo inteiro para que se perdesse ao vão, mas para que um dia vocês explorassem e chegassem a lugares que jamais poderiam imaginar.
― Vamos dominar o espaço?
― Um dia, meu querido e amado filho, um dia...
― Mas se todos os seres humanos são um pedaço de você, então por que existe a maldade? Por que existem ditadores, corruptos, gente querendo passar por cima uns dos outros?
― Filho, onde houver luz, haverá sombra. Mas saiba que é mais fácil um pedaço de luz iluminar uma sala escura, do que um pedaço de escuridão apagar a luz que encandeia no espaço. Eu fiz os maus não porque o quis. Eu fiz todos com minha bondade, com meu amor. Mas vocês, como eu, são livres para escolherem seus próprios caminhos. Alguns são o que são. São do jeito que os fiz. Outros mudam de personalidade, mudam sua aparência, maquiam seu corpo. Então passam a esquecer-se quem eles são. Ou pelo menos o que eram. Passam a caminhar por caminhos que não foram os que eu planejei para eles. Muitos deles voltam atrás, retornam até mim. Outros não, perdem-se para sempre na escuridão.
― Em minha mente vejo que existem muitas religiões, muitos modos de acreditar em você, uns creem na reencarnação, outros não. Outros creem que você já veio à terra na forma humana, outros dizem que você ainda vai vir... Afinal de contas, quem está certo?
― Meu precioso, aqueles que buscam a divisão, o desamor, a discórdia, a desavença, a indiferença, dentre outros maus sentimentos; todos eles deixaram de pertencer a mim e, portanto, o que vivem não é religião, mas um fingimento. Fico muito triste com estes meus filhos, mas fui eu quem os deixei livres. Por isso me felicito pelos que estão comigo, e mais ainda pelos que retornam a mim.
― Mas pai, então todas as religiões estão certas? ― Sorri quando você me chamou pela primeira vez de pai.
― Não, filho, infelizmente muitas religiões possuem mentiras, enganações, que nada tem a ver comigo, mas com suas más escolhas. Porém, não sou homem para generalizar um povo pela sua religião, não. Sou Deus e vejo a individualidade de cada pessoa. Já recebi de volta muitas pessoas de muitas religiões, pessoas que ao chegarem aqui, sem a culpa de saber a verdade e escolher pelo mal, decidiram abandonar o que não era meu e abraçar seu eu, o eu que fiz aqui e agora, como estou fazendo com você.
― Então o que eu sou? O que tudo é?
― Uma semente. Como nas árvores, eu lanço sementes e elas nascem e crescem. Tudo começou com uma semente no meio do nada, que lancei e cresceu e tornou-se a maior árvore que poderia existir.
― O universo é uma semente?
― Sim, meu filho.
― O que será de mim?
― Daqui a pouco você vai ser concebido. Uma pequena célula entrará em outra e se tornará você. Pequeno, frágil. E mesmo sendo uma única célula, é você todo que estará lá dentro. Mais uma semente que lancei. E você germinará, crescerá, se multiplicará, tomará forma, nascerá, brincará, chorará, aprenderá, estudará, viverá, trabalhará, brilhará, amará, será rejeitado, mas, apesar dos pequenos lampejos de morte, você não desistirá da sua vida e daqueles que colocarei nela. Está na hora de ir.
E então enviei você pela primeira e única vez, até que um dia retornes a mim.
(F.E.A. Pontes)

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